Sonhar em voz alta
Ela era a moça mais bonita da cidade.
Tinha os cabelos esvoaçantes e não era muito de sorrir. Na verdade, era também
a mulher mais marrenta que alguém podia conhecer, sabe? Ninguém sabia se ela
sentia felicidade, pois ela conquistou muitas coisas na vida. Tinha um belo
salário, se divertia quando queria, visitava a família. Essas coisas que todos
comentavam e que qualquer um descobre fácil. Mas ninguém nunca a vira soltar
uma risada na rua ou em qualquer outro lugar, a não ser que ela só fizesse essa
proeza em privacidade. Alguns diziam que ela era muito fechada, sabe, meu
senhor? Eu acho que aconteceu alguma fatalidade na vida dela para ela ser
assim. É tão jovem, só tem vinte e um anos, coberta de couro e ouro. Eu a
conheci em mais um típico esbarrão que o destino gera, e ela não parecia estar
muito bem. Ajudei-a recolher suas coisas que tinham caído no chão, e me
surpreendi: eram livros, acho que sete. Dois eram de romance. Quatro, falavam
sobre viver. Um, o último que eu peguei, era um livro da autoria dela. E ele
caíra aberto em um poema dela que continha a mistura dos outros seis. Ela
recolheu ele da minha mão rapidamente, colocou o cabelo atrás da orelha e me
lançou um olhar de “Agradecida”. Depois daquele dia, sempre nos
cumprimentávamos, e havia uma estranha troca de olhares que na verdade pareciam
longas horas de conversa. Íamos para os mesmos lugares, sabe-se lá se era
destino ou coincidência. Ao menos eu sabia que ela se divertia de alguma forma.
Caramba, essa mulher não sorria, por acaso ela escondia o sorriso no olhar? Vai
saber, meu senhor. Após alguns dias sem vê-la, já na época em que flores
cobriam a cidade, em uma noite em frente ao coreto do lago eu a
encontrei, sentada em um banco do parque, sozinha, de olhos fechados e sem
nenhuma expressão. Me preocupei, achando que ela estava se sentindo muito só, e
resolvi ir até onde ela estava. Antes que eu terminasse de perguntar se ela
tinha algum problema, me cortou rapidamente respondendo um “não tenho nada,
relaxa” e me calei por um tempo.
- Porque você é assim, Victoria?
- Assim como? Fechada demais? E como
você descobriu meu nome?
-
Hmm, é, sim. Andei pesquisando um pouco sobre você. É escritora, aquariana,
temperamento inteligente, e não se acha bonita mesmo que o mundo inteiro diga o
contrário. Também curte uma banda que têm filosofias esquisitas e é rodeada por
livros e compromissos matinais. Prazer, me chamo Henrique.
- Isso
vai ficar bem interessante. Se você lesse e pensasse um pouquinho sobre os textos
que escrevi há uns anos atrás, ia entender meu temperamento de hoje. Sempre
tive tudo na vida, sempre vivi em conforto, mas eu tinha muitos problemas
dentro de mim e fora também. Eu perdi a visão de família, não sabia ao certo o
que era ter amigos de colégio, ganhei maturidade cedo demais, entre várias
outras coisas, e só um tempo depois consegui ganhar ou entender tudo isso que
me faltava. Sou bem calada hoje porque morro de medo que os problemas voltem e
tento aproveitar ao máximo a tranquilidade que o meu trabalho me presenteou na
vida. É claro que eu sinto falta das confusões... mas tenho medo de voltar para
as angústias. Aprendi a manter meu
respeito. Eu fui otária, sabe? Todos nós
somos otários. Tudo o que eu gosto, odeio, fiz de errado ou certo, me ajudou
muito no meu desenvolvimento filosófico. Nos iludimos com várias coisas que queremos pro futuro, e na maioria das
vezes ela nunca acontece. Aprendi a não criar muitas expectativas e viver
apenas dos estudos, e por mais que eu me divirta bastante hoje, ainda são
tempos de fazer ou morrer. Tudo é questão de formação pessoal. Mas o problema é
que quando realizamos um sonho, não sabemos o que fazer, então sempre procuro
novos caminhos e novos destinos para fazer. Realizei grande parte de meus
sonhos justamente pelo que sou, e quero que continue assim.
Com
certeza ela não estava entendendo o porquê de um desconhecido, que com certeza
me considerava um observador secreto em sua mente, estar lhe dando atenção e
fazendo aquelas perguntas. Apenas quis saber porque que ela não sorria o
suficiente, mesmo que ela confirmasse que era uma pessoa extremamente feliz e
realizada, e por um instante houve uma calmaria. Uma brisa pesada passou e uma
música suave foi junto. Ela sorriu. Sorriu como eu nunca a vi sorrir antes. E então
me disse a coisa mais fantástica que ouvi em toda a minha vida: “Todo fim de semana, eu me sento aqui e
entrego meus sorrisos para o vento. Eu deixo que ele leve tudo o que eu andei sentindo, porque é uma
forma de me acalmar e me deixar mais relaxada. É uma coisa tão pequena, e que
tem extrema importância para mim. Volto ao passado e me lembro de tudo o que eu
fiz para estar aqui hoje. Tenho amigos, tenho o telefone dos meus ídolos, ainda
consigo ir na casa dos meus pais, eu consegui fazer tudo, eu me impedi de “morrer”.
Adoro explicar, adoro falar, mas tenho
medo que isso incomode as pessoas. Então fico quieta, mas continuo sendo eu
mesma quando acho necessário. Espero ter dado a resposta que você tanto queria.
A gente se vê por aí. Foi muito bom ter um vínculo com você e espero que você
seja extremamente inteligente, como eu. Aliás, o que eu vou fazer na vida? Acho
que a resposta vem de uma música muito
bonita: eu devo apenas continuar sonhando em voz alta.”
Ela
me deu um beijo. E então foi embora. Não foi preciso dizer algo, eu sabia muito
bem quem ela era e sabia onde encontrá-la. Misteriosa e impetuosa. Inteligente,
talvez mais do que eu. Ela alcançou mais coragem, se permitiu sonhar em voz
altíssima. Será que ela realizou mais um sonho?
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