SOBRE ESTAR DE LUTO EM VIDA


não sou mais quem eu era há dois anos atrás. e odeio profunda e amargamente essa minha versão. quero matá-la, mas ela é minha sombra - e ao contrário do filme animado do Peter Pan, em que a sombra dele foge de seu dono, a minha me persegue. não consigo fugir dela. e é extremamente difícil aguentá-la quando ninguém mais a vê, pelo menos não do jeito que eu a vejo. estou cansada de soluções racionais. passei a vida inteira sendo racional, e é cansativo e exaustivo estar sempre engolindo o choro para tentar fugir do que sinto. sentir por si só já um fardo terrível quando você se acostuma a reprimir suas emoções por medo de chegar a um estágio pior do que o em que já está. me odeio com tanta intensidade que parece que ninguém mais se lembra de mim. mas quem lembraria? hoje está cada um preocupado com a sua própria sombra, seja ela um monstro ou não. 

estou de luto em vida porque papai desenvolveu Alzheimer. e é devastador ver todos os dias que ele não consegue mais ser o homem que eu conheci. Sei que fui a segunda chance de papai na vida dele. ele nunca errou comigo, foi para mim o melhor companheiro e conselheiro que uma filha poderia ter. papai é insubstituível. eu reclamava com ele de não ter amigos para sair, mas eu mal sabia que um dia eu iria sentir falta de sair com ele, passear com ele, compartilhar um livro com ele. papai foi meu amigo a minha vida inteira, e agora eu tenho que aprender a andar sozinha, sem as mãos quentes de papai, e viver por ele. 

mas é extremamente difícil fazer isso, porque quando chego em casa, e o vejo quieto e deitado, sem vontade de conversar, sem fazer um comentário sequer sobre o que aconteceu no meu dia, eu me sinto morta por dentro. me acostumei demasiadamente a ter meu pai sempre ao meu lado, e agora tenho que estudar sozinha, dirigir sozinha, cuidar dos animais sozinha, ouvir música sozinha, e isso me mata porque eu estava sozinha mas meu pai sempre estava por perto, sendo o meu pano de fundo, sendo a testemunha da minha vida.

fui uma criança e adolescente bem solitária. papai sempre me dizia pra ter paciência, que um dia eu teria amigos e um bom namorado, pessoas com quem eu pudesse dividir o fardo que é viver nesse mundo capitalista que está se acabando a cada segundo. hoje tenho as duas coisas: três amigos e um bom namorado. mas papai esqueceu de me avisar que cada um também precisa viver a sua própria vida, lutar com suas próprias sombras, o individualismo é algo necessário ao ser humano - e eu também gosto, reconheço - e que nem sempre vou ter alguém sempre me dando atenção e fé nas minhas ideias e no meu futuro. admitir isso não é a parte mais difícil; viver com isso é. Assim como são as pessoas, são as criaturas.

tenho medo de já ser um fracasso. sei que sou infantil e incômoda, sei que fui mimada demais, amada demais, e aprender a me acostumar com uma nova realidade, extremamente dolorida, é muito difícil. não quero soluções, eu já as tenho, quero apenas saber que meu luto é tão válido quanto qualquer outro. estou me esforçando para parar de sofrer e voltar a viver, mas fazer isso sozinha, quando estou sentindo tanto ódio de mim mesma, de quem eu me tornei, não é uma tarefa simples. sei que quero me casar para testemunhar a vida um do outro, sei que ter total independência é o caminho para a liberdade, mas enquanto isso ainda não acontece, tento ter paciência, como me pedia papai, mas meus dias estão sendo mais difíceis do que fáceis. 

parece que eu não sinto mais amor - apenas um desejo de fugir pra longe de mim mesma...

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